terça-feira, agosto 29, 2006

Hora do mergulho - por Rodrigo Pinto

Por mais que pense, não consegue sorrir. Levanta-se, tira o pó do casaco e caminha a passos curtos, em direção a lareira. Enfia a mão no bolso e tateando procura um pequeno bilhete em papel pardo. Retira do bolso, em meio a cédulas de baixo valor amassadas, o tal papel. Abre e relê, uma , duas vezes. Atira-o ao fogo. Acabou-se. De súbito, leva as mãos à cabeça, e num gesto louco, sacode-a para os lados, como um enorme hipopótamo incomodado com moscas varejeiras nojentas.
Gira o corpo, e no momento seguinte sai em direção a porta. Abre-a num rangido e um vento cortante invade o aposento. Sai pela rua, procurando o bar mais próximo. Não demora a encontrar, e puxando as míseras notas sujas, estende ao dono do bar, que lhe serve uma vodka com gelo. Demora-se tomando, lembrando daquelas estranhas palavras que mudariam sua vida. Acende um cigarro e apóia a cabeça nos braços, fumando olhando para o bico das próprias botas, desgastadas pelo tempo. Traga com vontade, e sopra a fumaça em direção da lata de lixo imunda, com vermes enrolados num pedaço de carne podre.
Levanta os olhos num ânimo renovado, e de um gole só, termina seu drink. Sai do bar às pressas, com uma urgência incomum, e a passos largos, quase correndo, vai para as docas. Cheiro de peixe, marinheiros e estivadores jogando baralho e bebendo rum, como velhos piratas parados no tempo. Nem notam a presença daquele homem de sobretudo, barba por fazer e hálito de álcool, que caminha serpenteando a margem. Respira fundo aquele ar salgado. Pára e pensa. Ouve o pio de uma gaivota, e a sinfonia das ondas. Sente vontade de chorar e sabe o que deve fazer. Tira as botas e sobe na amurada mais próxima, sentindo o frio nos pés. Um mendigo lhe rouba os sapatos, e ele mergulha. Silêncio e escuridão. Frio, molhado. Afunda vagarosamente, sorve vários goles de água salgada e entrega-se. Num último instante, ainda vê o rosto dela.

4 comentários:

Anônimo disse...

Texto sombrio..dá pra sentir a angústia, a aflição e o desânimo do cara.
Dá calafrio..e um medo da possibilidade de sentir um dia td q esse cara sentiu.

Anônimo disse...

Tadinho dele... quem foi a vagabunda que fez ele sofrer tanto assim?
Muito bom Rodrigo, muito bom...

Anônimo disse...

Mmmmmm, que personagem soturno.
E a história tb, os cenários casaram perfeitamente com o clima do personagem. Quase imaginei ele ziguezageando no cais do porto, com a cabeça baixa, o vento batendo na nuca e mesmo assim seguindo em frente.
"Num último instante, ainda vê o rosto dela."
Só podia ter dedo de mulher, sempre tem!rs
Bjos

Anônimo disse...

Gostei!

Beijos