quinta-feira, abril 13, 2006

Um outro olhar - por Rodrigo Pinto

Olho para a folha em branco, dou uma lambida na ponta do lápis, e detenho-me antes de soltar qualquer palavra. Acendo um cigarro, olho para os lados. Como se fosse um crime, expressar as idéias num manuscrito para a posteridade. Acredito que alguém quer me impedir. Levanto-me, vou até a geladeira e apanho uma cerveja bem gelada. Ouço uma buzina lá fora. Abandono o lápis e o papel e vou atender o chamado. Era o Perseu, vendedor de bilhetes de loteria e manipulador de resultados do jogo do bicho no bairro. Me chama para ir até uma casa noturna do outro lado da cidade, que seria uma festa boa, muitas mulheres e bebidas, e o que mais eu pudesse querer. Gentilmente recuso, e volto para a mesa da cozinha onde um infinito branco espera por minhas citações sem sentido. Volto a pensar, e logo desisto. Não conseguia escrever nada naquela noite de 5feira, véspera de feriado. Apanho minha velha jaqueta jeans, e saio pelo sereno chutando pedrinhas pela madrugada. Tomo o primeiro coletivo que passa, sem olhar pra onde. Me esgueiro por baixo da catraca e sento-me no último banco, do lado da janela. Vejo a cidade passar em luzes. Desanimado, vejo o centro se aproximar. Jovens doentios, mendigos fedorentos, putas pagas e loucos de toda espécie. Dou o sinal e desço do ônibus, juntando-me aquela multidão de perdidos. Passo no Sol Nascente Bar, e lá encontro com o Moura, traficante de mulheres refugiado no Brasil depois do golpe político que destituiu o governo de seu país, que acobertava o esquema da maldade.
Ao me ver, surpreende-se e no seu sotaque único, avisa que a noite não está nada bem. Clima tenso, acerto de contas. Sento-me e tomo um conhaque. Ao meu lado, uma senhora de pantufas fala com o guardanapo. Nas mesas vejo casais, e solitários boêmios que dividem seus pensamentos com as estrelas. Reparo numa morena alta, tipo índia, com um pano cobrindo os seios e outro cobrindo seu sexo. Acompanhada de um brutamontes, ambos entram no Sol Nascente e realizam uma estranha movimentação. O homem, sem pensar, passa para a mão da garota um pacotinho suspeito. Ela vai ao banheiro, enquanto ele pede um conhaque. Moura fica de olho em tudo, inclusive num homem tipo detetive, sentado no balcão sozinho. Entra no bar um outro rapaz, tatuado, com olhos vermelhos e andar cambaleante. Senta-se numa mesa de costas para a parede, e de frente para a rua, e pede uma cerveja. Aproveito e peço mais uma, acendendo um cigarro. De repente, foi tudo muito rápido. Acelerada, a mulher sai do banheiro, e passa direto pelo seu companheiro, dirigindo-se a rua. Ele a segue. Num movimento estranho, o rapaz tatuado ergue o braço direito e dá uma bolinada nos seios da moça. "Vai dar merda" - pensei. O fortão não demora a defender sua fêmea e agride o rapaz atrevido com um soco. Todos no bar levantam-se para ver a briga. Antes de qualquer reação, atordoado pela pancada, o rapaz leva um chute nas costelas que o faz desabar. Seria um massacre, mas do outro lado do balcão, o homem tipo-detetive saca um 38 cano longo, disparando para o alto e ameaçando o grandalhão. Correria, muitos saem sem pagar, e o Moura se mija nas calças, ao lado da máquina de caça-níqueis. O casal vai embora xingando, e o homem ajuda o tatuado, que mesmo sendo salvo, o manda se foder. Apago meu cigarro e vou sentar numa mesa lá fora, pois o cheiro da urina do Moura estava me dando enjôo. Acho que vou pra casa escrever. Tudo isso daria uma boa história, e a folha em branco continua a me esperar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Genial! Uma história, duas visões. A propósito, de onde é o traficante de mulheres? Seria da Arábia Saudita? rsrsrs