segunda-feira, março 20, 2006

Dia (IN)comum

Como ele poderia levar a sério a notícia do jornal?


Quando ia à banca, procurava aquelas revistas pornográficas em preto-e-branco, com fotos malfeitas e balõezinhos estilo histórias em quadrinhos, reproduzindo os diálogos. Subia todo dia a mesma rua de manhã, maldita ladeira, e quando chegava no ponto de ônibus, não importa o banho que havia tomado, nem a roupa limpa que pegou na gaveta, já se formaram duas pizzas, uma embaixo de cada braço, e o colarinho já estava umedecido, a testa brilhava sob o sol, escorrendo gotas pelas costeletas.
Parava no boteco e pedia uma cerveja. Porra, 7 horas da manhã. Sede. Calor. Ônibus sempre lotado. As mesmas pessoas, o mesmo caminho. Odiava rotina. Sorvia generosos goles, e ouvia o noticiário no radinho de pilhas antigo do dono do bar. Moscas sobrevoavam o bolo de fubá embolorado, e o cheiro da cozinha dava náuseas. Pagou o casco, e foi para o ponto de ônibus. Lá, a loira com uniforme de recepcionista. Todo dia. Lencinho no pescoço, cabelo engomado pra trás, preso em coque. Colete azul-marinho, e saia da mesma cor até os joelhos. Camisa branca abotoada até o pescoço. "Bom dia, moça". Ela olhava com repugnância aquele cabeludo suado e com bafo de álcool logo cedo. Ele sorria para o nada e abria um livro de simbologia religiosa, anarquismo e criptografia. Lia com atenção, mas o barulho dos motores não deixava assimilar nada.
O ônibus chega, e junto com ele aproximadamente 87 pessoas espremidas umas nas outras. Subia com dificuldade e odiava o velho que encoxava a menina segurando os cadernos. Sentia o cheiro de perfume vagabundo, das secretárias atrasadas. O suor do mestre-de-obras e o cheiro de loção pós-barba dos yuppies de cara lisa e gel no cabelo. Viajava de pé, equilibrando o livro e os pensamentos. Lhe pesava nos ombros o dia-a-dia corriqueiro.
Alguns minutos depois, que pareceram uma eternidade, salta do coletivo no centro da cidade, onde apressados vão pra lá e pra cá, desviando dos ambulantes e cuidando das carteiras e bolsas. Pára na porta de um prédio antigo, respira fundo e entra. Mais alguns passos e espera um elevador barulhento e mofado, movido a manivela por um ascensorista de 132 anos.
Pede o décimo-terceiro andar e tem certeza que é seu dia de sorte, quando no quinto andar, entra no elevador o motoboy, com uma mochila maior que ele e um calhamaço de papéis endereçados a chefes de porra nenhuma.
Chega em seu ambiente de trabalho e não encontra ninguém. Não entende merda nenhuma e telefona pra um colega. Este lhe diz que estão todos dispensados, morreu o dono da empresa e o velório está ocorrendo neste momento. "Saiu no jornal , cacete! Você não viu?".


Sim, ele tinha visto. Mas não tinha levado a sério.

5 comentários:

Anônimo disse...

Caraca, morreu o dono da CDGá e eu nem tava sabendo!? rs
'Livro de simbologia religiosa, anarquismo e criptografia', 'cabeludo suado e com bafo de álcool logo cedo', 'décimo-terceiro andar'...não sei não, acho que conheço esse personagem....só faltou falar q trabalha no andar futurista....hehehe
Da hora seus textos, eu piro na riqueza de detalhes dele.... Tô lendo Maupassant, o cara escreve com riqueza de detalhes tb, vc ia gostar....
Bjos

Anônimo disse...

Fala sério caro Jornalista... estou adorando os textos... haha, vc é um comédia mesmo.. continue assim com as suas histórias malucas......

Carina

Anônimo disse...

Se o Chorão ler isso ele vai fazer uma musica (Y)
Jornalista com futuro, adorei otexto e vou te favoritar pra sempre passar aqui tah?
Bjuuu ;*

Anônimo disse...

Demais Perro! Escreva mais, muito bom! Bjs.
Rosa Bowie.

Anônimo disse...

Oi Perro, você está quase um "Garcia Marquez". Personagens fantásticos e, principalmente folêgo e ritmo!
Bjus Janaina